A Deus o que é de Deus, ao povo o que é do Estado!
Por que será que esta notícia me preocupa? Pela fuga dos médicos que procuram melhores sistemas de valorização dos serviços que prestam? No actual mercado de factores, ninguém poderá duvidar ou, sequer, tecer qualquer juízo de valor que confronte tais atitudes com as respectivas consciências morais.
O que socialmente está aqui em causa não são, sequer, as matrizes deontológicas (será necessário evocar o juramento de Hipócrates) que regem as disciplinas dos profissionais de qualquer serviço nacional. O indecente da questão é a fuga ao dever de retribuição dos que, durante anos, tiveram como fundo financiador da sua formação académico-profissional as contribuições fiscais daqueles a quem agora só querem atender em privado, podendo suportar, suplementarmente, os custos dessas deslocações.
Este pode ser, finalmente, o quadro probatório das intenções sociais da governação vigente: se realmente se mantiver esta tendência ou, mesmo, nada se fizer para a reverter, então podemos dizer adeus ao Estado Social de Direito. Ou, até, adeus Portugal.
24.04.2007 - 08h14 Catarina Gomes
Isabel Neto, médica que foi durante anos a mais fervorosa defensora dos cuidados paliativos, diz que deixar para trás a unidade da especialidade do Centro de Saúde de Odivelas (Loures) "foi uma decisão difícil e ponderada". A propósito da sua saída do Hospital de Santa Marta, em Lisboa, José Roquette, eminente cirurgião cardiotorácico, responde que "as pessoas são livres de fazer as suas opções".
Isabel Neto, médica que foi durante anos a mais fervorosa defensora dos cuidados paliativos, diz que deixar para trás a unidade da especialidade do Centro de Saúde de Odivelas (Loures) "foi uma decisão difícil e ponderada". A propósito da sua saída do Hospital de Santa Marta, em Lisboa, José Roquette, eminente cirurgião cardiotorácico, responde que "as pessoas são livres de fazer as suas opções".
Os dois deixaram o sistema público de saúde inaugurando na semana passada novas tarefas no Hospital da Luz (privado), em Lisboa. Fazem parte de um grupo de centenas de médicos que fizeram a sua carreira no Serviço Nacional de Saúde (SNS), mas agora optaram pelo sector privado.
Segundo números do Sindicato Independente dos Médicos (SIM) de 2006 e 2007, foram entre 300 e 500 os médicos que pediram licença sem vencimento de longa duração (pode ir até dez anos) ou exoneração da função pública, um número que era residual em anos anteriores.
Muitos foram trabalhar para o sector privado em exclusivo, algo que quase não acontecia, explica o dirigente do SIM, Carlos Arroz. Houve também 400 médicos que se reformaram no ano passado, um número dentro do normal, desconhecendo-se quantos terão ido para o sector privado, nota o sindicalista.
O modelo da saúde privada está a mudar. Durante anos funcionou com as sobras dos horários dos médicos do público, que trabalhavam de manhã no hospital e à tarde em clínicas. A tendência é hoje para a criação de quadros próprios de médicos e enfermeiros, comenta Téofilo Leite, presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada. Roquette, director clínico do Hospital da Luz, diz que dos cerca de 200 médicos que trabalham na unidade, 120 estão em exclusivo. A maior parte tem mais de 55 anos e pediu licença sem vencimento, estava à beira da reforma ou já estava reformada, explica.
Os recrutados em exclusividade não são novatos. Pelo contrário, "vamos buscar cabeças de cartaz", pelo seu "know-how, prestígio", explica Jorge Mineiro, director clínico do Hospital CUF Descobertas (Grupo Mello Saúde), ortopedista que deixou o Hospital de Santa Maria este ano. Mais de metade dos clínicos da unidade estão em exclusivo (são cerca de 60 em 120).
"Pesca à linha" preocupa
Até ao Verão nasce outro gigante da saúde em Lisboa: o Hospital dos Lusíadas, do grupo Hospitais Privados de Portugal. A fase de recrutamento está a decorrer e precisam de cerca de 200 médicos, alguns em exclusividade, revela o presidente do grupo, Luís Vasconcelos. O responsável adianta que escolhem ter quadros próprios em áreas estratégicas ou em equipas que exigem continuidade de assistência, como é o caso dos cuidados intensivos. Vão buscá-los ao sistema público. Mas Luís Vasconcelos afirma que não são os ordenados que atraem médicos com carreira firmada. É a falta de capacidade de atracção do sistema público. A média de idades dos clínicos anda nos 45 a 50 anos e "têm poucas perspectivas de progressão na carreira no [sector] público. Sentem-se pouco motivados a continuar".
É essa também a opinião do bastonário da Ordem dos Médicos, Pedro Nunes: "É inexorável o abandono dos médicos. É o resultado da falta de investimento". Quem pensa que estas unidades "roubam médicos à função pública" está a ver o quadro ao contrário, "são as más condições da função pública que fazem as pessoas abandonar o SNS", comenta.
Com a abertura de dois grandes hospitais privados em tão pouco tempo, alguns hospitais ressentiram-se, mas não se está a falar de debandada geral. Existem 24 mil médicos no SNS e o SIM fala de até 500 médicos com licenças sem vencimento e pedidos de exoneração.
José Miguel Boquinhas, presidente do conselho de administração Centro hospitalar de Lisboa Ocidental (que junta o Egas Moniz, o Santa Cruz e o São Francisco Xavier) fala de "saídas pontuais": oito médicos pediram recentemente licença sem vencimento para ir para o privado, em 800.
O presidente do Hospital Geral de Santo António (Porto), Sollari Allegro, diz que nos últimos dois anos saíram 12 oftalmologistas para o privado (um terço do serviço). Não se trata tanto da "quantidade", mas da "qualidade". "A pesca à linha dos melhores médicos e enfermeiros pode provocar alguma pressão sobre os serviços públicos", nota Manuel Delgado, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares. "Não é fácil substituir profissionais de elevada craveira". Mas a separação entre médicos do privado e do público é um bom sinal, defende. "O facto de as pessoas trabalharem ao mesmo tempo nos dois sistemas não é bom para a eficiência [do SNS]"."
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