Os dois golpes constitucionais
O ano da nossa (des) constitucionalidade
Da Polis
Professor J. Rodrigo Coelho
Os Homens, os Factos e as Ideias (a análise e o discurso que vivemos)
E por que é ‘tempo’ de presidenciais, merecem destaque dois dos grandes atentados à Lei Fundamental com que, provavelmente, ficará colmatada a melancólica presidencialização de dez anos sampaiistas.
1. Uma dessas ofensas (por acção) à nossa Lei Fundamental consistiu, em nosso entender, no enigmático acto de, por sua própria iniciativa, o PR dissolver a AR sem fundamentação jurídico-constitucional: à luz da nossa CRP, não existiu qualquer situação relacionada com os pressupostos previstos na alínea e) do seu artº 134, não sendo “evidente o alcance do poder do PR de se pronunciar sobre as emergências graves para a vida da República… um conceito vago como é o de emergências graves para a vida da República suscita grandes dificuldades … existe, porém, uma larga margem de discricionariedade política do PR, quer para decidir quanto à existência de «emergências graves» que justifiquem pronunciar-se para individualizar os pressupostos objectivos da sua tomada de posição (problemas de anormalidade constitucional, situações económicas excepcionais, etc.), quer para escolher o momento e a forma de se pronunciar” [i]; nem nenhuma das situações previstas nos dois números do artº 195º, pelo que convém salientar que a dissolução da AR “tem lugar, quase sempre, justamente para possibilitar novas soluções de governo”. É que há “claramente um nexo orgânico necessário entre o Governo e a AR à sombra da qual foi constituído, pelo que a renovação da AR implica necessariamente a substituição do governo” [ii].
Entendemos, por isso, que possam ter estado na origem do tal acto discricionário as vantagens dos imperativos decorrentes da articulação automática dos preceitos orgânico-constitucionais, enquadrando politicamente a “mira” do PR, já que “a dissolução da AR é um acto da exclusiva competência do PR. Não depende de proposta de qualquer outro órgão, nem de autorização ou parecer favorável, já que o parecer do Conselho de Estado não é vinculativo. Finalmente, o acto de dissolução não está ligado a nenhum pressuposto objectivo (crise governamental, por exemplo). O PR goza assim de uma grande margem de liberdade na dissolução da AR, sendo este um dos traços característicos do sistema do Governo. De resto, … a dissolução da AR transforma-se no principal instrumento de intervenção institucional do PR” [iii]. Mas este seu poder-dever de intervenção não pode invadir a esfera estritamente governativa, pois “a função de governo ou de direcção política pertence principalmente ao Governo (artº 182º)”, apesar da responsabilidade política do PM e do Governo perante aquele (artºs 190º e 191, nº 1), e mais ainda, “os Ministros não são individualmente responsáveis perante o PR (artº 191, nº 2)” [iv], quadro de expectativas que conformam o que, através dos órgãos da comunicação social, ficou interiorizado na mente da opinião pública em geral.
Mantendo a fidelidade científico-conceptual ao meu mui citado mestre J.A. Maltez, aproveito a oportunidade de uma das suas alusões a esta temática, quando metaforicamente declara: ”Afinal, continuamos a preferir o decretino nomeativo à velha justiça da igualdade de oportunidades e não parece que sejamos capaz de decepar o atavismo inquisitorial das irresponsáveis denunciações de ouvida que, ainda no século XX, se reanimaram com a versão ministerialista da bufaria pidesca. “ [v]
2. A segunda ofensa pode configurar-se, politicamente, na instrumentalização político-partidária do PR. Admitindo a seriedade da sua posição perante as medidas governativas que promovem a desigualdade profissional a partir da ofensa a direitos constitucionais adquiridos (estamos a referir-nos, por exemplo, ao diploma, obra do actual Governo, em que se dispõe sobre o congelamento das progressões nas carreiras profissionais), dificilmente esta outra ofensa (por omissão) poderá escapar aos olhos da suspeição pública, promulgando aquele diploma de iniciativa governamental, merecedor de todos os tipos de fiscalização da constitucionalidade (o que constituiu o mesmo que um não-veto político presidencial, ou seja, omissão superveniente do não uso, quando devido, desse poder constitucional que é o veto político ─ interpretação que entendemos seguir a linha de raciocínio de G. Canotilho e V. Moreira, quando afirmam que “a promulgação … apresenta uma dupla dimensão: (a) garante a autenticidade do diploma…; (b) exprime e pressupõe o direito de controlo (controlo material) exercido pelo PR.
O controlo exercido é, por um lado, um controlo de defesa da Constituição, pois, de acordo com o princípio da prevalência da Constituição (cfr. art. 3º), o PR tem o dever, como órgão constitucional, de não colaborar no procedimento de formação de um acto do Estado contrário à Lei Fundamental; por outro lado, o controlo é um controlo político autónomo, próprio de um órgão constitucional de um sistema misto parlamentar-presidencial, ao qual são conferidos poderes de conformação política. O primeiro tipo de controlo manifesta-se sobretudo através do veto por inconstitucionalidade (cfr. art. 279º); o segundo está sobretudo ligado ao chamado veto político (…) o veto presidencial é distinto da sanção do período monárquico: a sanção era a manifestação da contitularidade, pelo monarca, da função legislativa; o veto é a manifestação dos poderes de controlo constitucional e de conformação política de um presidente republicano, num sistema misto. (…) o direito de veto e a fiscalização preventiva da constitucionalidade … são coincidentes no caso das leis e decretos-leis)” [vi].
[i] CANOTILHO, J. J. Gomes, MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa (Anotada), 2ª edição revista ampliada, 2º volume, Coimbra Editora, 1985, pp. 127-128.
[ii] Idem, pág. 286.
[iii] Idem, pág. 226.
[iv] Idem, pág. 28.
[v] www.tempoquepassa.blogspot.com, Outubro de 2005.
[vi] Idem, ob. Cit., pp. 132-134.
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